quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O que teme o CFM? Opinião de uma brasileira que cursa medicina em Cuba

“No Capão Redondo, ninguém sonha em ser médico”

Para estudante brasileira de medicina em Cuba, médicos temem mudança de pensamento da população em relação à sua saúde


Revista Fórum


Clique aqui para ver o vídeo.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

O apartheid da saúde



Como médico peço desculpas aos médicos cubanos por algumas grosserias nas manifestações promovidas por alguns colegas. Voltar para senzala ou cara de empregada é ofensa e preconceito. O fígado tomou conta do cérebro. Não sou porta-voz ou representante de classe, mas me envergonho do ocorrido. Conheci as dificuldades que barreiras culturais e políticas, quando fiz pós-graduação no Canadá, mesmo estando numa situação bastante diferente dos hermanos. Desejo aos colegas cubanos e de outros países um bom trabalho, no povo e abandonado pelo abismo social brasileiro. Respeitem nossa constituição e se atenham a uma boa medicina. Diferente de Cuba, já temos muitos partidos políticos. Lembro que se desejarem pedir asilo político esqueçam. O atual governo brasileiro é pró-castrista.
O clima azedou pois um problema crônico transformou-se num factoide político. Após dez anos o governo descobriu que existe um Brasil sem médicos, sem esgoto e sem educação. Padilha, candidato ao governo de São Paulo, precisava de uma agenda e visibilidade. A saúde virou prioridade, esquecendo que esgoto e educação podem erradicar doenças.
Os médicos brasileiros se negam a trabalhar onde existe carência de tudo. De forma orquestrada, o governo decidiu importar médicos, que não poderão atuar em locais diferentes para os quais forem designados. Criaram dois tipos de médicos: os do Brasil abandonado e os do Brasil padrão FIFA. O exame Revalida é uma exigência de qualificação mínima e prática normal em qualquer país democrático. Por que não permitir que trabalhem nos seis hospitais de excelência privados? Estes hospitais, cinco em São Paulo, têm isenção fiscal.
A realidade é que inexiste um sistema de saúde para todos. As ilhas de excelência do SUS estão cercadas por um mar de abandono. Os hospitais universitários abandonados são obrigados a se filiar a uma empresa de terceirização. Mais de 50% dos formandos não têm vagas para residência médica, de enfermagem e de farmacêutico clínico.
É humilhante a situação de abandono imposta aos técnicos de enfermagem. Na maioria dos hospitais existe um êxodo enorme destes profissionais. Eles representam mais de 30% da força de trabalho da saúde. Trabalham em média 36 horas seguidas, em três empregos, folgando no máximo três noites, incluindo os fins de semana. Muitos desistem da profissão em poucos anos. São verdadeiros heróis. Desafio me desmentirem.
Os brasileiros que têm planos privados- 35% – mendigam locais para atendimento.
Estamos vivendo o apartheid da saúde.

Por Alfredo Guarischi, médico

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Planos de saúde nunca prestaram serviços tão ruins


Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina  da USP, na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, é um estudioso do sistema de saúde brasileiro.
Mestre e doutor em Ciências da Saúde, também concluiu dois programas de Pós-Doutorado, um naFMUSP, outro na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
Especialista em Saúde Pública pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
Mário Scheffer aborda nesta entrevista, feita por e-mail, as demandas e os principais desafios doSistema Único de Saúde. Também faz uma avaliação sobre a atuação dos planos de saúde e criticaa rede insuficiente, as filas de espera, a má remuneração dos médicos, entre outros.
O professor também foi membro titular do Conselho Nacional de Saúde (CNS), da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e da Câmara de Saúde Suplementar da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Atuou em entidades médicas, respondendo pela comunicação do Sindicato dos Médicos de São Paulo, Associação Paulista de Medina, Cremesp, CFM, além de coordenar a pesquisa Demografia Médica no Brasil
O SUS completa 25 anos em 2013, juntamente com a Constituição Federal. Como estudioso do sistema de saúde, quais são hoje os maiores desafios?
Nesse um quarto de século, o SUS já demonstrou sua potencialidade, mas ainda é uma reforma incompleta, não assegurou o acesso à saúde de qualidade a todos os cidadãos. Mesmo cheio de falhas, é um patrimônio dos brasileiros, responsável por uma produção impressionante de consultas, exames, internações; ampliou o acesso à atenção básica e serviços de emergência, diminuiu a mortalidade infantil, dá cobertura universal de vacinação e de assistência prénatal; eliminou o sarampo; interrompeu a transmissão do cólera, da rubéola; fez reduzir drasticamente o percentual de fumantes no país e mantém um sistema exemplar de transplantes, de imunizações e de tratamento da aids, dentre tantos exemplos. Porém, sofremos com as agruras de ter um sistema de saúde com recursos públicos insuficientes, um sistema estratificado com imensas esigualdades de acesso da população.
É importante dizer que as bases legais e normativas já estão estabelecidas, o sistema já adquiriu experiência operacional, mas o Sistema Único de Saúde (SUS) hoje não tem sustentabilidade financeira e muito menos política. O SUS não é prioridade dos governos, mas é alentador notar que nas recentes mobilizações de rua o SUS está sendo defendido por muitos manifestantes, ou seja, parte da população valoriza e quer um sistema público melhor.

Então o maior problema é político? E como você vê essas opções pela privatização do SUS?
Exatamente, as respostas não virão apenas das esferas legais e técnicas. Foram decisões políticas, inclusive, que aceleraram a privatização do nosso sistema de saúde. Hoje assistimos o protagonismo do setor privado, tanto no financiamento, na forma de pagar os serviços; quanto na prestação, na forma de fornecer a assistência; e agora na gestão, entregue em grande escala às organizações privadas. O sistema de saúde brasileiro nunca será puro público ou puro privado.
Teremos que buscar as mudanças nessa superposição de lógicas, considerando essa dualidade. O problema não é o mix em si, mas a forma como as decisões vêm sendo tomadas para favorecer o privado e para atender interesses particulares.
O financiamento da saúde no Brasil é majoritariamente privado. Isso é um problema?
Temos um sistema público universal subfinanciado e uma estrutura liberal, com predomínio de gastos privados desembolsados por famílias, indivíduos e empresas, que compram planos de saúde, serviços, medicamentos e insumos. Só 47% dos gastos de saúde do Brasil são públicos, na contramão dos sistemas universais de saúde, que dispõem de mais de 70% de recursos públicos, como Reino Unido, Canadá, Alemanha, Itália, Espanha.
Quando temos mais gastos privados, aumentamos as desigualdades de acesso, inviabilizamos a equidade, pois diminuímos a característica redistributiva do financiamento do sistema de saúde baseado nas taxas de impostos progressivos.
A conquista dos 10% das receitas da União para a saúde resolveria essa situação?
O Sistema Único de Saúde nasceu com problemas de financiamento. Em 1988 a Constituição dava ao SUS 30% da receita da Seguridade Social, percentual que deixou de ser cumprido já em 1990. Em 1993 a saúde deixou de contar com os recursos da folha de salário e em 1997 a CPMF foi desvirtuada. A Emenda Constitucional 29 ajudou ao estabelecer a vinculação de 12% das receitas de estados e 15% dos municípios e ao decidir que a União deve reservar à saúde o montante aplicado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB. O critério derrotado, dos 10% da receita corrente bruta da União, daria certamente um fôlego ao SUS. Aqui, vale dizer, que essa bandeira dos 10% é uma falsa unanimidade em defesa do SUS, pois ela tremula também sob a ótica contábil de alguns grupos privados e entidades corporativas que reivindicam recursos para si. O SUS terá problemas enquanto prevalecer essa política econômica, que defende a redução das despesas de custeio com as políticas sociais para alcançar elevados superávits primários, para investir em infraestrutura e abater divida pública. Ora, o Estado devia regular a economia visando obter os recursos e cumprir a obrigação constitucional de dar saúde para todos. Esse impasse conjuntural, somado às iniciativas de privatização, têm agravado a crise do SUS.
Você fala da relação público-privado mal regulada. Explique melhor.
O destino da nossa riqueza coletiva está nas despesas públicas e privadas, não apenas nos gastos públicos. Uma análise de cenários focada só em aumentar os recursos públicos estará viciada por um erro sistemático. A agonia do SUS não passa somente pelo subfinanciamento e pela má gestão. Nas mãos de quem circulam os atuais recursos totais da saúde e como serão utilizados os possíveis novos aportes? Não estão claras as responsabilidades que a coletividade entende que deve confiar ao setor privado da saúde no Brasil. Além do peso do privado no financiamento, a prestação também é privada: dos 6.300 hospitais do país, 70% deles são privados; apenas 35% dos leitos hospitalares, 24% dos tomógrafos e 13% dos equipamentos de ressonância magnética são públicos. Há evidências de que os custos administrativos e assistenciais dos sistemas baseados em múltiplas organizações públicas e privadas de compra e venda de serviços de saúde são extremamente elevados e ineficientes.
Essa relação está afastando o SUS de sua proposta original?
Sim. Devemos olhar para todos os aspectos da relação público-privado, que estão mudando a fisionomia do sistema de saúde brasileiro e afastando o SUS de sua missão original. Além do finaciamento e da prestação privada, há o crescimento do mercado de planos de saúde às custas de subsídios públicos e a entrega da gestão pública a organizações privadas.
Repito que o privado regulado é necessário ao sistema de saúde, mas só avançaremos se fundos públicos ganharem aportes significativos, passando a financiar apenas serviços, tanto públicos quanto privados, desde que includentes e deliberadamente universais.
Como analisa o mercado de planos de saúde no Brasil?
É um mercado que cresceu artificialmente, às custas da regulação frouxa da ANS, capturada pelos interesses do mercado. Saiu da Agência um presidente que antes era da Qualicorp e acaba de ser reconduzido um diretor que já serviu à Amil. Há uma porta giratória, que também destina cargos comissionados para ex-funcionários de operadoras que retornam às empresas quando deixam a agência. Os planos de saúde nunca prestaram serviços tão ruins, têm rede insuficiente, filas de espera, pagam mal os médicos, vendem falsos planos coletivos para fugir da regulação, dão calote no SUS, pois não fazem o ressarcimento.
Há um descontentamento geral…
A indignação de médicos e usuários desse setor já equivale ao descontentamento em relação ao SUS. Ano que vem tem eleições, os planos doam recursos para candidatos que devolvem em cargos e favores. Nos sistemas universais, planos privados representam a menor parte dos gastos totais com saúde, não passam de 15%, aqui já atingem 25% da população, graças ao crescimento de planos baratos no preço e medíocres na cobertura.
E temos novidades que podem levar à maior segmentação de coberturas e a planos ruins, como o poder conferido às intermediadoras – a Qualicorp – e a chegada do capital estrangeiro, com a venda da Amil para a United, maior seguradora americana, um negócio aprovado a toque de caixa pela ANS e Cade.
Como anda o movimento contra subsídios públicos aos planos, que tem o apoio do Simesp?
Com a evolução de rendimentos de parte da população, com maior acesso a bens de consumo, o governo federal, de olho nas eleições, aposta na preferência da população pelos planos populares e acena com subsídios públicos às operadoras. É mais um golpe que descaracteriza ainda mais o SUS como sistema universal. No mundo, a ascensão das massas trabalhadoras impulsionou sistemas públicos de saúde universais e robustos. Aqui querem seguir o exemplo que não deu certo, dos Estados Unidos, veja-se a Reforma do Obama, que tenta colocar nos trilhos o sistema mais caro do mundo e que excluiu tanta gente daquele país da assistência. A presidente Dilma recebeu, em março, os donos de planos de saúde para tratar de possíveis isenções e desonerações ao setor.
Há um movimento contrário a esses subsídios…
Foi iniciado um movimento, liderado pelo Idec, que já conta com dezenas de entidades e mais de 20 mil adesões individuais e que defende o fim de subsídios públicos diretos e indiretos para planos e seguros de saúde privados: atendimento de clientes de planos de saúde em serviços do SUS, sem ressarcimento aos cofres públicos; gastos com planos privados dos servidores públicos; revisão da renúncia fiscal, com dedução de gastos com planos de saúde no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas; fim de isenções tributárias a planos de cooperativas e de filantrópicos; e limitação dos recursos do Tesouro Nacional destinados ao funcionamento da ANS.
É preciso haver um reordenamento do mercado de planos de saúde, com estipulação de barreiras à entrada de planos ruins, explicitação dos conflitos de interesse, isso casado com a expansão da oferta pública e melhoria da qualidade da assistência no SUS.
Qual sua opinião sobre a gestão por meio de organizações sociais?
Houve uma fase do embate ideológico, plebiscitário, que foi superada, pois o modelo está implantado e redes inteiras, como a estadual e a do município de São Paulo, estão reféns das OSs. Além de dúvidas sobre a legalidade, faltam evidências se de fato tornaram mais ágil e eficiente a gestão. Parece que as filas não diminuíram, o sistema de saúde continua pouco resolutivo e os usuários seguem insatisfeitos. Não houve economia para o SUS, pois as OSs consomem mais recursos e não investem em infraestrutura, e há pouca transparência no cumprimento dos contratos, como apontam os tribunais de contas, muitas nem entregam a produção contratada. A rede de saúde da capital, por exemplo, foi esquartejada, há mais de 10 organizações gestoras, que promovem uma batalha salarial, uma concorrência predatória, que leva à falta e alta rotatividade de médicos. Mantém contratos precários, temporários, com CNPJ, cooperativas etc. Aniquilam a possibilidade de estruturar um plano de cargos e salários.
As OSs se sobrepõem à administração direta?
O duplo comando (OS e prefeitura ou estado) não é só nas relações de trabalho mas na organização dos serviços. Essa entrega da gestão para entidades tão heterogêneas entre si dificulta padrões homogêneos e definidos de metas, funcionamento, gestão e remuneração de pessoal. Sugiro uma espécie de moratória do modelo, a não entrega de novas unidades para OSs, para que se possa fazer uma avaliação mais profunda dos impactos. Será impossível retomar tudo para a administração direta engessada.
Há outras propostas em curso, parcerias público-privadas e Fundações Públicas de Direito Privado, também polêmicas, e poderá haver um cenário de competição de várias modalidades de gestão.
Me parece que esses modelos privados fragmentados, que trabalham por produção e não se integram ao SUS, tornarão difícil a instituição das regiões de saúde e a ordenação do acesso do SUS pela atenção primária, assegurando a continuidade do cuidado, tampouco irão solucionar gargalos dos serviços especializados, o acolhimento de doentes crônicos e idosos, e a sobrecarga dos pronto-socorros, alguns dos grandes nós do SUS.
Você é coordenador do estudo Demografia Médica no Brasil. Faltam médicos? É realmente necessário trazer profissionais de outros países?
O Brasil tem 400 mil médicos mas faltam sim profissionais em inúmeros municípios, nas periferias e em vários serviços do SUS. Há pessoas sofrendo e morrendo com a falta de médicos, não se pode ser insensível a essa realidade.
Deveria haver uma combinação de medidas. A melhoria da remuneração e condições de trabalho dos médicos, o Provab, corrigindo as distorções desse programa, e o incentivo a estrangeiros, desde que com a devida revalidação de diplomas, podem amenizar o problema em curto prazo. A adoção de planos de carreira e o maior aporte de recursos para o SUS só teriam efeito de médio prazo. Mas há o risco de o aumento global de médicos, via abertura de mais escolas ou revalidação automática de diplomas estrangeiros, levar esses novos médicos mal formados para os mesmos lugares onde já há elevada concentração, nos grandes centros e no setor privado. Não haverá solução definitiva sem mudanças estruturais no sistema de saúde, sem mais financiamento público e sem a presença do Estado que diminua a concentração regional da produção e da renda e que atraia profissionais às regiões desassistidas.

Fonte: Revista Dr!, Maio/Junho de 2013

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Vinda de médicos cubanos encontra oposição de Conselho Federal

CFM não aceita que eles trabalhem no país antes de fazer uma prova.
Índice de aprovação de estrangeiros é baixo, em torno de 15%.

Fernanda GalvãoBrasília, DF

O governo brasileiro quer trazer 6 mil médicos de Cuba para atuar no interior do país. O Conselho Federal de Medicina não aceita que eles trabalhem no país antes de fazer uma prova.
O acordo de intenções foi fechado em um encontro no Itamaraty. “Trata-se de uma cooperação que tem grande potencial, promissora, e à qual também atribuímos valores estratégicos”, diz Antônio Patriota, ministro das Relações Exteriores.
A sugestão de importar profissionais foi dada ao governo pela Frente Nacional de Prefeitos, por causa da dificuldade em contratar médicos para o interior do país.
Quase 60% atuam nas grandes cidades. Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo têm o maior número de profissionais por grupo de mil habitantes, enquanto Amapá, Pará e Maranhão têm menos de um médico para cada mil.
Ainda não foram definidos os detalhes de como o governo contrataria o serviço dos médicos cubanos, mas a questão mais complicada é se esses profissionais serão ou não liberados da revalidação do diploma. Hoje, é exigido que médicos que tenham se formaram no exterior façam uma prova para poder atuar no país.
O índice de aprovação é baixo, em torno de 15%. O Conselho Federal de Medicina condena o trabalho de estrangeiros sem passar pelo exame. “Tem que se avaliar a competência do profissional que vai exercer a medicina no país. Temos exame para isso, o revalido, que, infelizmente, tem mostrado que a maior parte dos médicos que vêm da Bolívia e de Cuba não tem condições de exercer a profissão”, afirma Carlos Vital, presidente em exercício.
Wesley Soares, médico brasileiro formado em Cuba, diz que os profissionais de lá estão aptos a trabalhar aqui. “Eles estão altamente preparados com foco humanitário, com uma visão integral de saúde, baseada na prevenção em saúde”, diz.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Carta Dra. Lisieux



Essa carta foi encaminhada por uma amiga cirurgiã pediátrica e presidente da Sociedade de Cirurgia Pediátrica do Estado do Rio de Janeiro, para o senador Cristovam Buarque.

Acho que todos os argumentos apresentados são extensivos ao PROVAB

Caro Senador Cristovam Buarque:

Gostaria de tomar a iniciativa de dialogar consigo sobre o PL que propõe, a respeito do serviço social médico obrigatório após a formação universitária. Me parece que há vários pontos obscuros e esta proposta, lamentavelmente, não será a solução para os problemas. 
Para tanto, proponho alguns dados reais, que possivelmente podem contrarestar algumas idéias que prevalecem, até compreensivelmente, entre as pessoas que não são médicos.

De fato não é preciso ser especialista na área para saber que vamos mal, mas talvez seja aconselhável a ajuda de especialistas na área para saber porque vamos mal e como podemos melhorar. Afinal, senador, se os médicos não forem as pessoas a serem consultadas sobre como melhorar a atuação médica, quem o é?

Porque, é claro, seria um absurdo embarcar na idéia de que os médicos são uma 
corporação descomprometida com o interesse público. Tal proposta seria semelhante o clichê de que todos os políticos são desonestos e descomprometidos com a causa pública, o que certamente não é verdade.

Os principais motivos para os médicos não aceitarem empregos nas cidades menores do país, senador, não se devem à falta de compromisso social ou preconceito de classe, senador, se devem à falta de segurança trabalhista, falta de equipamento, falta de estrutura e ausência de possibilidade de prover educação para os filhos e emprego para os cônjuges nas pequenas cidades. A frase que usa em sua justificativa, atribuindo os problemas que discutimos apenas a interesses financeiros é absolutamente injusta conosco, senador. A tal medicina sofisticada, distribuída em ilhas de excelência a que se refere, é simplesmente medicina de bom padrão, senador, e deve ser minimamente distribuída a todos. Não cabe uma medicina pobre para gente pobre. Médico inexperiente e não equipado para as pequenas cidades pobres e médico experiente e bem equipado nas tais ilhas. Seu projeto, senador, infelizmente, só perpetua a desigualdade. Culpando e penalizando o profissional médico por ela. Os estudantes precisam, mesmo, se convencer de que é preciso e possível oferecer tratamento de saúde a cada um dos cidadãos. Mas isso não se faz mediante distribuição da precariedade, e sim mediante política distributiva do que tem boa qualidade.

As principais causas de mortalidade no país são doenças cardiovasculares (primeira causa), tumores malignos (segunda causa) e trauma (terceira causa, mas a principal entre adultos jovens). Isto mostra, senhor senador, que, ao contrário da mentalidade facilmente assumida de que as grandes mazelas de saúde do país são simples e devidas apenas à falta de assistência básica, o problema é, infelizmente, mais complexo. É claro que medidas eficientes de prevenção podem melhorar bastante esses números, mas não podem neutralizá-los, além de depender de atitudes muito mais complexas do que medidas clínicas. A prevenção do trauma depende de melhores estradas, melhores condições de segurança no trabalho e melhor educação com relação à segurança das crianças. A prevenção de doenças cardiovasculares depende absolutamente de modificações culturais (do padrão alimentar, principalmente). A prevenção de doenças oncológicas depende ao extremo da modificação de fatores ambientais. É claro que, num sistema de saúde perfeito, a prevalência destes problemas cai. No entanto, para contrabalançar, numa população que envelhece (e isto acontece no Brasil, a olhos vistos), estas doenças serão, certamente, uma via final comum incoercível, porque são as doenças que acomentem a faixa etária mais velha da população (e isto acontece também nos países desenvolvidos e com sistemas de saúde considerados excelentes). Concluindo: um médico inexperiente munido apenas de boa vontade, capacidade de raciocínio, um bloco de receituário e uma mesa de exames, definitivamente, não resolve o problema da saúde no interior.

Um dos maiores problemas de saúde mundial (segundo ninguém menos do que a OMS) é tratamento cirúrgico. Milhões de pessoas mundo afora sofrem e têm limitações ou inutilidade para o trabalho por sequelas de fraturas não operadas, partos traumáticos, hérnias não operadas, cataratas. E isto, caro senador, de novo, precisa de uma estrutura muito mais complexa para ser resolvido. Para traçar um painel aproximado dos números envolvidos apenas considerando doenças comuns de tratamento cirúrgico relativamente simples, mais de 1% das crianças apresentam hérnias inguinais, ao lado de 5% dos adultos americanos. 20% dos adultos acima dos 60 anos têm catarata. A transferência de pacientes de cidades menores para cidades maiores para tratamento de saúde, caro senador, praticamente nunca é para tratamento de casos simples de doenças comuns, mas sim para tratamento de doenças mais complexas, sequelas de condições não tratadas anteriormente, doenças cirúrgicas, tumores malignos, sequelas do envelhecimento e malformações congênitas. Um médico recém formado, por mais competente que fosse e com mais boa vontade que demonstrasse, não conseguiria resolver isso sem estrutura adequada. Muito mais cara do que um salário, uma mesa, um bloco de papel e um estetoscópio.

O currículo básico das faculdades de medicina já contempla medicina social na mais absoluta maioria das escolas e tem o objetivo primário de formar generalistas, em especial nos últimos anos. Já há programas de extensão, com atuação de estudantes em unidades básicas de saúde, por exemplo, como rotina nas nossas universidades. De forma geral, um estudante de medicina já tem, em sua formação de base, exposição às mazelas de saúde do nosso país. Um estudante de medicina estuda em torno de dois anos matérias de formação geral (técnica e social) no chamado ciclo básico, mais 3,5 anos matérias “clínicas”, onde os problemas clínicos das várias áreas são propostos em conjunto com uma vivência prática controlada e fortemente supervisionada e 1,5 ano (chamado de internato), dividido em ciclos de atividade clínica nas áreas básicas da medicina (clínica geral, pediatria, ginecologia e clínica cirúrgica), também sob supervisão. Vem daí, senador, que nenhum recém-formado no padrão atual de currículo médico está apto, por exemplo, a operar. A formação médica obrigatória das universidades só dá a este jovem, no máximo, em torno de 6-8 meses de convívio com clínica de doenças cirúrgicas, nos quais há pouquíssima ou nenhuma oportunidade de operar. No que se refere às demais áreas, em torno de 4 meses para cada uma delas. Um médico recém formado precisa imperativamente de mais experiência, sr senador. Ele precisa atuar ainda durante algum tempo com uma supervisão presencial, próxima, porque ele ainda tem limitações sérias para distinguir algumas situações e para atuar em alguns casos de alta complexidade. A residência médica é uma necessidade imperativa, embora, infelizmente, não esteja disponível para ao menos metade dos médicos recém-formados do país. Ela não serve para formar especialistas sofisticados somente. Serve para formar bons clínicos, ginecologistas, pediatras, cirurgiões, psiquiatras.

Um médico recém-formado levado a trabalhar sem supervisão e com tarefas acima de suas capacidades é um convite a erros involuntários – e frequentemente inconscientes.

Não é verdade que os cursos de medicina se dediquem à alta tecnologia a nível de formação de graduação. Mas também não é aconselhável que ensinem a tratar infartados (doença comum) sem indicar cateterismos diagnósticos e terapêuticos e observação em UTI (equipamento de alta tecnologia). Não é razoável ensinar estudantes a diagnosticar cálculos de vesícula biliar (doença comum) sem dizer que o tratamento preferencial é colecistectomia videolaparoscópica (alta tecnologia). Ou tratar doenças malignas (doenças comuns) sem diagnóstico específico e quimioterapia (alta tecnologia). A educação médica em torno de verminoses e partos normais tão somente é um engodo, senador. Precisamos ensinar o estado da arte. Que não é o mesmo da época do famoso jeca-tatu. E me refiro aos generalistas, não aos (poucos) especialistas em áreas específicas.

Médicos são tão cidadãos quanto as demais pessoas, senador. Têm, em geral, mais preocupação social, inclusive, por causa da exposição a problemas graves e injustiças variadas como problemas de todo dia. Também queremos resolver os problemas. Mas resolver de fato.

Um abraço

Obrigada por ler estas considerações, nós médicos estamos precisando desesperadamente de interlocutores.
Lisieux Eyer de Jesus, cirurgiã pediátrica, TCBC-RJ, presidente da Sociedade de Cirurgia Pediátrica do Estado do RJ.